terça-feira, 31 de agosto de 2010
A imagem já diz tudo...
    Seguindo uma sugestão de uma amiga (posso chamá-la assim?) do Twitter, a @nercirosalem, resolvi abordar os medos, na maioria das vezes infundados, e anseios que rondam o paciente que vai ser anestesiado. Anestesia é o estado que permite a outro profissional intervenções de caráter cirúrgico ou diagnóstico, caracterizado pela ausência de dor, inconsciência, amnésia e em alguns casos relaxamento muscular total (no caso da anestesia geral). Não vou me estender muito na parte técnica pois acho que ficará enfadonho para o não médico, e este blog é feito em sua maioria para leigos.
   Resumidamente temos a anestesia geral , que é o estado citado acima, em que o paciente é intubado, ou seja, é colocado um tubo orotraqueal para que ele possa ser ventilado, pois sua respiração é interrompida pelo relaxante neuro muscular, pela paralisia do diafragma, responsável pela respiração.
A intubação
Laringoscópio, usado na intubação
Já intubado.
   O que causa o pavor tão grande em relação à anestesia, sendo que é um processo indolor (pelo menos deveria ser...), e a cirurgia, que é a grande "vilã" da história, que vai "cortar", "causar dor"?  Primeiramente, a meu ver, é a perda da consciência, o que gera um estado de total entrega àquele profissional que vai conduzir o processo. A perda do controle de suas ações gera ansiedade na maioria das pessoas. A anestesia condutiva, raque ou peridural também tem seus fantasmas, que tratarei em outro post.
  O que passa na cabeça de um leigo nessa situação? Consigo imaginar: "Meu Deus, eu ficarei nu, inconsciente, que vergonha..." ou "Será que estas pessoas vão agir de maneira correta, eu não poderei me defender...". É exatamente isto, uma pessoa incapaz de se defender perante uma agressão(cirurgia) é algo realmente apavorante para a "vítima".
  Alguns esclarecimentos: Sobre a nudez, sinceramente fora médicos com algum tipo de perversão sexual ou psicopatia, enxergamos aquele ser que está ali deitado como um boneco, inanimado, estamos tão habituados que não distinguimos se o paciente é feio, bonito, gordo ou magro, não de depilou ou está menstruada...
Nosso instrumento de trabalho
monitor multi paramétrico
  Outro ponto a esclarecer é que, com os avanços tecnológicos da atualidade, dos monitores e dos aparelhos de anestesia, a probabilidade de acontecer alguma intercorrência clínica e passar despercebida é muito pequena, temos o paciente na mão, como dizemos em nossa linguagem.
  Obviamente, o nosso "instrumento de cura" pode matar ou sequelar também, e matava bastante em outras épocas, por isso o medo arraigado da anestesia em nossas mães e avós, que de alguma forma vão passando para outras gerações, o medo do desconhecido, do incontrolável, do imponderável, mas isso é assunto pra o post número II.
Chatotorix, o bardo, o ser mais chato da história depois do Ivan Lins e do Osvaldo Montenegro...
  Espero sinceramente que estes posts venham a esclarecer e não sejam tediosos. Até o próximo...
domingo, 29 de agosto de 2010

    Viver a medicina também é conhecer até que ponto vai a maldade no ser humano, por vezes inacreditável pra quem vive no mundinho dos prédios e dos condomínios fechados dos bairros nobres da cidade. Eu confesso que não canso de me surpreender, mesmo vacinado há muitos anos pelo trabalho diário.
   Essa realidade é muito mais pungente e real nos plantões de pronto socorro dos grandes hospitais públicos, realidade esta que tenho a sorte de não mais participar, mas os relatos de minha curta passagem por este tipo de trabalho já dão uma boa amostra do que é ser médico num país de terceiro Mundo...
   Tenho certeza que outros concordarão comigo, ver lesões horríveis, cirurgias extensas, sentir aquele cheiro desagradável nem chega perto de conhecer as histórias de bastidores...
   Eu dava plantão, já como anestesista, quando morava no Rio, num Hospital público no início da Rodovia Presidente Dutra, referência de acidentes automobilísticos e violência de uma região conhecida pela pobreza e criminalidade, que é a Baixada Fluminense e sinceramente os casos que chegavam de bandidos baleados ou acidentes de carro com as piores lesões não me impressionavam, mas houveram alguns casos que marcaram pelas histórias.
  Eu dava plantão de sábado, reconhecidamente o mais violento em qualquer hospital, confesso que naquela época gostava de atender trauma, era empolgante pegar os pacientes com lesões fatais, hemorrágicas, degolas, lesão por arma branca e de fogo, quanto maior o calibre, mais empolgante, e tentar equilibrá-los e entregá-los vivos no pós operatório, os cirurgiões, novos como eu, tinham o mesmo sentimento.
Feliz Natal...
   Cheguei num sábado de Natal, dia 25 pela manhã, cansado e a fim realmente de tirar um cochilo, pois tinha ido dormir tarde na véspera. O início do plantão geralmente era tranquilo, começando a pegar fogo depois do almoço. Estava trocando de roupa no vestiário do centro cirúrgico quando o colega que eu estava rendendo apareceu. Dei feliz natal pro cara e ele me deu a triste notícia que estava entrando uma laparotomia. "Puta que pariu, pensei, lá se vai meu soninho..."
   Meu "soninho" não era merda nenhuma perto do que ia ouvir...A paciente era uma senhora de 86 ANOS, que tinha sido espancada, estuprada e empalada com pedaços de madeira e pasmem, atirada num valão de esgoto depois. Puta merda, quem é o animal ou animais que tem coragem de fazer um troço desse, na véspera do Natal??? Entrei pra cirurgia e apesar dos esforços da equipe cirúrgica e meus, teve uma hora que o cirurgião olhou pra mim e eu só fiz uma negativa com a cabeça. Foi um silêncio sepulcral na sala, como eu nunca tinha visto, enfermeiras chorando baixinho por uma pessoa que elas não conheciam, algo incomum. Desliguei os aparelhos e saí dali. Depois nos informamos que o cara, já preso junto com os comparsas, tinha feito aquilo com a própria avó, pois ela tinha negado dinheiro pra ele comprar drogas...
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Nunca esqueça de pagar suas contas...
   Neste mesmo hospital, ainda bem que não em meu plantão, cheguei um dia e me contaram que naquela semana estava rolando uma cirurgia de um viciado com lesões por PAF. A cirurgia ia bem, o paciente até que ia sobreviver, quando um barulho de gritos e comoção na entrada do bloco operatório. De repente, entra o traficante que não tinha conseguido matar o paciente, manda todo mundo se abaixar, tem a frieza de confirmar a identidade do "operado" e descarrega um pente inteiro de uma Glock no campo cirúrgico. Depois ele pede desculpas pelo incômodo e sai com a calma e a certeza que a impunidade traz, parece que já tinha "acerto" com a polícia local, algo que obviamente os presentes não tinham nem queriam provar. Provável "causa mortis": o rapaz tinha cheirado a noite toda e tentou fugir sem pagar a conta na boca de fumo...

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Qual a culpa do moleque?

Estava uma vez na sala esperando um paciente baleado, sem gravidade, lesões em abdome. Entra a maca com o paciente algemado, acompanhado por um policial que a cada meio minuto dava uma coronhada na cabeça do paciente. Olhei pro meganha e falei "Ô chefia, pode deixar que eu anestesio, essa tua técnica aí tá ultrapassada..." O policial retruca: "Sabe o que esse filho da puta aí fez?" Eu geralmente não gosto de saber essas coisas, porque mal ou bem eu sou um ser humano, e a vontade interior de maltratar um cara que fez uma maldade é inerente a qualquer um, e eu não estou ali pra julgar ninguém. Falei que não queria saber, só que ele me deixasse trabalhar em paz. Mesmo assim o cara falou "Esse animal aí deu uns tiros na ex namorada que não queria voltar pra ele, só que a menina tava segurando o filho de 1 ano deles, a mãe tá sendo operada e vai sobreviver, mas o moleque morreu na hora..." O cara tava tão drogado que ainda xingava a vítima, chamava de "piranha" pra baixo. Respirei fundo enquanto o policial dava a última porrada no infeliz e pus ele pra dormir...

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terça-feira, 24 de agosto de 2010
Essa aconteceu quando meu ex chefe de residência era ele próprio residente:
Ia acontecer uma laparotomia pra um baleado (cirurgia abdominal para exploração dos danos do P.A.F., projetil de arma de fogo) que tinha sido alvejado por um marido traído, vários tiros em abdome. Aquele papo inicial com o Ricardão, que chorava muito, dizendo que não tinha feito nada, que era inocente...
"Eu não fiz nada, nem conheço aquela mulher", chorava o paciente.
A cornitude e a anestesia
O anestesista, meu ex chefe, falava pra ele se acalmar, que tudo ia dar certo. De repente lembrou-se de perguntar sobre o jejum pré operatório, fato importante pra definir a técnica da indução da anestesia:
"Companheiro - disse o anestesista- isso é importante que você diga, pois você pode até morrer...quando foi a última vez que você comeu? Fale a verdade..."
E o Ricardão, aos prantos, resolveu falar: " Tá bom, eu confesso, eu comi a dona, mas foi uma vez só, uma vezinha só..."
Pano rápido para as gargalhadas de todos os presentes...

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Caça improvisada...
Outro caso legal em minha residência foi uma cirurgia que faríamos num paciente com Síndrome de Down, muito forte, devia pesar uns 120 quilos. Sempre damos um comprimido de um calmante (pré-anestésico) antes da cirurgia, para dar um conforto, tirar a ansiedade de quem vai ser operado. Neste paciente não adiantou nada, ele estava bem agitado, não queria deitar na cama de jeito nenhum, gritava...Me virei para preparar uma injeção intra muscular, pois aquele monstro não deixaria puncionar uma veia. Foi tudo muito rápido, quando dei por mim o mamute tinha fugido da Sala operatória, e estava gritando pelo corredor. Foi um circo, todo mundo olhando...Eu e meu staff do dia não pensamos duas vezes, saímos correndo atrás dele, o cara agarrou o paciente, jogou-o no chão imobilizando-o com um mata leão(ele era faixa preta de jiu  jitsu) e eu vim correndo e cravei a seringa no cara e injetei o conteúdo. Fiquei ali ajudando a segurar a fera até ele se entregar. Depois levamos o "troféu" de volta pra sala sob aplausos e gozações, parecia temporada de caça, me senti um índio amazônico usando uma zarabatana...Aliás foram os "curares" das flechas e zarabatanas dos índios do Brasil que deram origem aos curares (relaxantes neuro musculares) muito empregados por nós em anestesia


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A introdução dos mais variados objetos no orifício anal principalmente por homossexuais solitários algumas vezes pode resultar em constrangedoras cirurgias para abordar lesões e retirar os tais objetos. Mais pitoresco ainda são as desculpas utilizadas pelos pacientes para justificar a presença destas "ferramentas" naquela região. A mais comum é a seguinte: o paciente alega que estava correndo completamente nu pelo banheiro, escorregou e caiu empalado no desodorante Axe (eles gostam muito de Axe) que estava estrategicamente instalado no meio do cômodo. Sinceramente depois de muito ouvir isso cheguei a conclusão que correr nu pelo banheiro deve ser algum esporte desconhecido de alguma Olimpíada Gay. Legumes cilíndricos diversos, consolos e até uma bomba de bicicleta já presenciei.(dava pra ver a molinha da bomba no Raio X)

Prazer e engenhosidade...
Mas o mais engenhoso que eu vi foi de um senhor com uns 70 anos, que tinha contruído um intrincado sistema de roldanas e polias que permitia que ele sentasse no tal objeto e fizesse as mais variadas manobras...o cara deveria ter patenteado aquilo. Óbvio que ele se empalou e foi parar no pronto socorro com toda aquela tralha, super envergonhado. Confesso que foi a mais dolorosa vez que tive que conter o riso esses anos todos...ou será ânus todos?
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Livro do Dário...
     Assunto amplamente debatido, merecedor de um capítulo inteiro no livro de um colega aqui da cidade, "A Estratégia Da Lagartixa" de Dário Vianna Birolini é o título do post. Aliás, quem se interessar, vale muito a pena , é a ótica do cirurgião e sua formação,com lances engraçados e assuntos que até abordei aqui, idênticos, que todos nós já passamos, enfim, é ótima leitura.
    Pretendia aqui passar como os médicos se sentem quado o jogo vira, e se tornam pacientes, com um pequeno exemplo na vida real: esse que vos fala...
  Geralmente o que vemos quando colegas tem as doenças nas quais são especialistas primeiramente é a negação. Quadro clássico do pneumologista ou cirurgião de tórax olhando seu próprio Raio X ou tomografia, a imagem escarrada de carcinoma, e o cara simplesmente não enxerga o óbvio.
Nós mesmos tratando de nós mesmos...
   Além da negação somos, em jargão médico, os maiores "tigres" da população em geral. Tigre, pra quem não sabe, é aquele paciente que simplesmente caga e anda para as orientações médicas e medicamentos...não faz nada do que é pedido e vai levando a doença aos trancos e barrancos. Pois é, surpresa, nós mesmos somos os piores pacientes, não vamos a consultórios, alegando falta de tempo, fazemos "consultas" de corredor, remédios prescritos de orelhada, interrupção de tratamento sem aviso, novos medicamentos incluídos também de qualquer jeito, ou seja, somos o que de pior pode se esperar de um paciente.
   No caso de uma doença mais grave, que necessite de uma intervenção mais séria, como cirurgias, nós somos a própria quintessência da Lei De Murphy...se algo tiver que dar errado em um procedimento, sempre acontecerá com um médico! É a famosa "ESMERALDITE". Complica sempre a cirurgia, a quimioterapia tem que ser interrompida por não adaptação, todos os efeitos colaterais, até os mais absurdos, sempre acontecem com os médicos e por aí vai a lista.
   O outro interessante fato de estar do outro lado é que podemos ver na pele como os pacientes se sentem, sendo inclusive um ótimo professor de ética em medicina. Aprendemos praticando a velha máxima de não fazer com os outros aquilo que não gostamos que façam com a gente.
Meu Fisioterapeuta
   Aí entra o exemplo deste humilde aspirante a blogueiro. Tenho um problema um tanto ou quanto grave em minha coluna cervical, degenerativa. Em poucas palavras eu tenho uma coluna cervical de um cara de 70 anos, acho que deu pra entender, né? Isso me faz, quando em crise, ter dores às vezes lancinantes em pescoço e braço direito, e eu CONTINUO TRABALHANDO com ela na maioria das vezes (aí a tal negação...). O tratamento, até agora, foi medicamentos de dor crônica e fisioterapia com meu troglodita predileto. É até engraçado, não troco meu fisioterapeuta por NENHUM outro, mas chamo ele de Jason e suas sessões de "Massacre da Serra Elétrica". São realmente um massacre, dá pra medir a macheza de um cara, mas já me tiraram de 2 crises e estão tirando de uma terceira. A fragilização, depressão, dificuldade de aceitação que ocorreram comigo até agora foram uma escola. Consigo ter uma ótica diferente quando um paciente tem dor, é mais fácil eu exagerar na dose do analgésico do que deixar alguém nessa situação.
Cuidado ao falar com pacientes é uma virtude...
    No que concerne ao meu caso, ainda não tenho uma conduta definida, se cirúrgica, se paliativa, mas um bom exemplo de como deve ser ruim a falta de sensibilidade com um paciente fragilizado ocorreu numa dessas consultas de corredor: mostrei minha ressonância mais nova a um super especialista de coluna de São Paulo, hiper bem indicado. Ele olhou o exame, riu na minha cara e perguntou se a pessoa que tinha dado o laudo do exame era minha amiga, pois ela tinha sido "perversa" no que escreveu. Eu disse que infelizmente era aquilo mesmo, eu tinha um exame anterior parecido...o cara viu que eu fiquei sem graça, adotou uma postura séria e disse que ia se empenhar em me ajudar. Até que ele foi bacana, mas que a risada inicial me deixou sem ação, isso deixou...
   Um dos fatores que me levou a escolher a anestesia como especialidade é que os pacientes não tem memória do que é falado no centro cirúrgico, e isso pra minha boca suja é uma benção. Mas tenho bastante cuidado para NUNCA fazer juízo de valor sobre a pessoa que está ali deitada, tenha ela 270 quilos ou nariz de bruxa, chata ou  pedante, consigo criar uma barreira mental para dar a todos o mesmíssimo tratamento...
sábado, 14 de agosto de 2010
 Talvez o grosso da população não saiba, mas um enorme problema de saúde pública em nosso meio é o vício em drogas opiáceas (derivados de morfina), muito comum entre os  anestesistas.
   Os opióides ou morfínicos são drogas derivadas do ópio, feitos a partir da papoula  (Papaver somniferum).O conhecimento do ópio remonta talvez à pré-história ou, pelo menos, aos períodos históricos muito distantes. Sementes e cápsulas de papoula foram encontradas em uma vila da era Neolítica, situada na Suíça . De qualquer forma, a evidência mais antiga do cultivo da papoula data de 5.000 anos e foi deixada pelos Sumérios A papoula é descrita em um ideograma desse povo como "planta da alegria".
   Pode-se dizer que o fato mais importante do início do século XIX foi a descoberta da morfina, obtida por Friedrich Sertürner, um alemão, assistente de farmacêutico, que trabalhou no isolamento de princípios ativos do ópio. 
   A dependência tem início fortuitamente, quando o médico se expôe a este tipo de droga por ocasião de algum procedimento cirúrgico ou episódio doloroso. São drogas potentes, que além de analgesia causam euforia, bem estar e desinibição entre outros. As mais comuns causadoras de dependência,além da morfina, são a meperidina e o fentanil. Depois passa a procurar-se somente os efeitos prazerosos, é de difícil remissão e evolui quase sempre de forma letal.
   Imagine, em analogia, uma pessoa viciada em cocaína que tenta largar o hábito.  Agora imagine se todo dia, ao chegar pra trabalhar de manhã, alguém coloque uma carreira da droga em sua mesa...Essa facilidade de obtenção é a principal causa de fracasso no tratamento.
   Na faculdade, antes de frequentar o hospital, já ouvíamos falar de colegas dependentes de morfínicos, além de óbitos pela mesma causa. Quando entrei na residência, alguns meses depois, um staff se atirou do apartamento em Copacabana, após exagerar um pouco na dose de dolantina.  Houve também uma colega veterana que suicidou-se.
   O caso que mais me marcou foi o de uma grande amiga com a qual estudei desde o pré vestibular, fizemos faculdade juntos e fomos contemporâneos na residência, eu na anestesia, ela na procto. Soube que ela tinha começado a namorar um colega de residência que era sabidamente usuário, e por infelicidade, teve dois abortamentos espontâneos, tendo sido submetido a curetagens uterinas.Foi ali que ela foi apresentada ao que seria sua sentença de morte.
   Rapidamente começou a usar dolantina junto com o tal namorado, eles inventavam pequenas cirurgias pra ter acesso à droga, vários setores do hospital já desconfiavam da conduta deles. Um dia, ao chegar para assumir meu plantão, trocava de roupa no vestiário quando escutei um barulho estranho. Corri, curioso, e vi, chocado, essa colega desmaiada junto a privada, tendo várias ampolas de dolantina quebradas ao redor. Se alguém mais visse aquilo, ela seria expulsa com certeza. Peguei-a no colo, levei para o setor de anestesia, puncionei uma veia e fiz uma droga chamada naloxona, que reverte os efeitos dos morfínicos. Pedi aos auxiliares de enfermagem que tinham presenciado a cena que não contassem a ninguém o  que eu tinha feito, pois de alguma forma eu era cúmplice daquilo.
   Quando ela acordou, passei um sermão pesado, ela chorou durante umas 2 horas e prometeu que iria parar de usar. Uns 2 meses depois o namorado dela foi pego completamente chapado, NO MEIO DO CORREDOR DAS ENFERMARIAS. Minha amiga jurou que tinha terminado e estava limpa.
   Um dia, tarde da noite, sua mãe me ligou aos prantos, dizendo que ela estava internada numa UTI, com overdose. Gelei. Falei pra mãe dela se acalmar, que iria vê-la pela manhã. O hospital era em Niterói, longe de onde eu estava.
   Uma amiga em comum ligou as 3 da manhã dizendo que ela tinha tido 2 paradas cardíacas. No íntimo já tinha certeza de como terminaria. Levantei cedo e, já dentro do carro, essa amiga em comum ligou, dando a notícia do falecimento. Perdi o chão. Sou um cara bem frio, mas confesso que naquela hora eu senti o baque.
   Não consegui ir ao enterro, pois no horário eu estava de plantão e não arrumei ninguém pra me dar cobertura. Falei com a mãe dela, mas ela estava muito sedada,  nem lembrava depois  do telefonema. Visitei-a assim que pude , mas nem ela nem ninguém da família estava em condições de falar. Voltei pra casa despedaçado. Depois fiquei sabendo que a família dela tinha se mudado, deixando o endereço apenas para familiares.






   
   


   
  

quarta-feira, 11 de agosto de 2010
As séries médicas de tv vem se multiplicando nos últimos anos, e para surpresa até dos produtores, com grandes audiências. Obviamente, como são histórias inventadas, com consultores médicos na parte técnica, há bastante exagero em certos aspectos, mesmo que corretos no que diz respeito aos livros .
Aqui os exageros e erros mais comuns...

1) Médicos que fazem de tudo:
Hoje em dia há especialização e super especialização de profissionais em medicina, ou seja, cada vez mais nos limitamos a realizar somente uma pequena gama de procedimentos. Isso se deve ao aumento do conhecimento como um todo, impossibilitando que um mesmo profissional exerça procedimentos de várias especialidades. Na TV vemos caras que fazem cirurgia, diagnóstico clínico, procedimentos hemodinâmicos, batendo escanteio e correndo pra cabecear, é até engraçado, eles parecem enciclopédias ambulantes, e sempre tem resultado bom, infalíveis...

2) Todo mundo sabe até os rodapés de livro:
Os personagens sabem detalhes mínimos, doenças raríssimas e diagnósticos dificílimos na ponta da língua, sem pestanejar. Isso só seria possível se eles não fizessem outra coisa na vida senão estudar...

3) Quando há um erro, vemos os médicos confessando tudos às famílias, dando todos os detalhes com requintes de crueldade, praticamente pedindo "me processa, por favor".

4)A tradução para as legendas é sofrível. Normalmente os legenders que postam gratuitamente na net tem uma acuidade muito melhor do que os "oficiais" da tv e dvds. Estes cometem erros crassos de tradução, como "chest tube" (dreno torácico) traduzido para "tubo de tórax", ou put an I.V line(pegar uma veia, no coloquial) como "colocar uma linha venosa" entre outros.

5) Profissionais que escorraçam pacientes, como o meu ídolo Dr House (o alter ego de todos os médicos), e estes aceitam tudo passivamente. Ora, se aquele cara falasse daquele jeito num hospital aqui, principalmente público, levava uma azeitona e não chegava vivo no plantão seguinte...

6) Caras entrando no centro cirúrgico COM A ROUPA DA RUA sem nenhuma das chamadas EPIs(equipamentos de proteção individual), parando cirurgias ou COLOCANDO A MÃO COM UMA SIMPLES LUVA no campo cirúrgico e realizando tempos cirúrgicos heróicos, enquanto os outros profissionais assistem tudo passivamente, só falta baterem palmas...

7) TUDO, absolutamente TUDO acontece nos hopitais das séries, doenças que não vemos nunca, os próprios personagens TODOS em algum momento sofrendo de doenças com uma carga dramática exagerada. Com certeza se relatassem  o cotidiano chato do dia a dia da medicina não haveria audiência...



segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Se você por acaso estiver se perguntando o porque desse termo recorrente que eu uso pra me descrever, explico:  nos dias de hoje, o médico perdeu aquela aura de glamour de outros tempos, do ser além do bem e do mal, do super humano, do herói...A realidade nua e crua das contas no fim do mês, dos plantões mal remunerados, da tabela defasada das cirurgias e consultas nos levam a uma carga por vezes desumana de trabalho, noites em claro debruçados sobre vidas, onde o número é mais importante que a qualidade do atendimento, onde os detalhes de faturamento dos convênios são mais importantes que os próprios pacientes em si.
Isso faz de nós operários e vetores da saúde, mas nós mesmos doentes física e psiquicamente, embrutecidos pelo cotidiano, pelo mapa cirúrgico enorme, pela fila de pacientes para "derrubar". O que esperar de uma profissão em que um parto, com toda sua responsabilidade ética, legal e humana é mais barato que fazer luzes em um cabeleireiro?
A refletir...
domingo, 8 de agosto de 2010
   Médicos, como algumas pessoas insistem em ignorar, são pessoas normais, que sentem as mesmas coisas, se deprimem, se excitam, comem, bebem e vão ao banheiro...e, para surpresa de muitos: SIM, nós dormimos também. Quando você chegar a um hospital de madrugada e o médico que te atender não estiver com a roupa alinhada e cara de sono, SIM, o cara estava dormindo, ele provavelmente está virando mais de 24 horas de plantão e vai trabalhar normalmente na manhã seguinte.
    A faculdade de Medicina e a Residência Médica, e tenho orgulho de dizer que freqüentei uma das melhores do país, a federal do RJ, são escolas como outras quaisquer. São freqüentadas por jovens em sua maioria, que ficam doidões ou bêbados na noitada, e/ou chegam em péssimo estado de conservação na manhã seguinte, fazem as mesmas merdas que outros nesta fase. É o melhor período de nossas vidas, nos sentimos acima do bem e do mal, indestrutíveis. Esta sensação desaba quando caímos no mercado de trabalho. Na faculdade temos a alegria e a excitação de mexer em cadáveres, aprender sobre nosso funcionamento, atender os primeiros pacientes, ter contato e conhecer aquilo que vai ser nossa futura especialidade, tomar esporros humilhantes e ver situações engraçadíssimas. Me lembro uma vez, num plantão de terceiro  ano, em que chegou ao PS um cara totalmente alcoolizado falando um monte de merda: o staff médico do plantão, um cara que não dormia nunca, colocou o estetoscópio na cabeça do cara, disse que suas ondas cerebrais estavam em total harmonia, que ele podia ir embora sossegado...e o cara foi. Fui chamado pelo oftalmologista deste plantão que estava no corredor às gargalhadas: entramos na sala, e, ao examinar os olhos da paciente com aumento  dava pra ver espermatozóides, bonitinhos, tentando nadar ainda e procurando o óvulo que nunca achariam. O namorado da menina só faltava morrer de vergonha, e nós dois ali, sérios, segurando o riso pra não constrangê-lo mais...

   Depois da formatura, a especialização. Nossa especialidade, a anestesiologia, é considerada escrava de cirurgiões, verdadeiramente nossos clientes, e, como terceirizados, temos que fazer de tudo pra agradar. Rir de piadas sem graça, recebê-los com um sorriso quando chegam horas atrasados, entre outras coisas. Mas tudo começou em 1846, quando Thomas Green Morton, um dentista americano, criou um inalador de éter sulfúrico. Obviamente a substância já existia, e até já era usada como anestésico, mas esse cara conseguiu o marketing certo, numa apresentação pública em Boston, e ficou com o nome na história, há relatos que ele passou por cima de outros colaboradores e ganhou a fama sozinho...

Na residência nos empolgamos com nossa escolha, pois é aquilo que amamos(quase sempre), ficamos ainda mais arrogantes, cheio de si com as primeiras cirurgias sozinhos, e, muito por conta disso, cometemos nossos primeiros erros. Entre nós, chamamos de FAZER MERDA mesmo, como qualquer um. Uma vez, no final de minha residência, última cirurgia de sexta feira, era dali pra praia...na ansiedade troquei uma ampola  e mandei uma senhora pra UTI por conta disso...(trocas de medicamentos são os erros mais comuns em nossa especialidade). O staff me mandou ficar de plantão ao lado da paciente até que ela saísse da UTI, o que ocorreu somente domingo...nunca mais troquei medicamentos em minha vida. Em outra vez, uma paciente de uns 80 anos na mesa cirúrgica, sedada: Falei pro cirurgião, brincando, que há 2 tipos de mulher, pra casar e pra cruzar...e não é que a velha abriu os olhos, e falou categoricamente: “Minha nora só serve pra cruzar, aquela filha da puta não sabe fazer um bife direito pro meu filho...”; o cirurgião dobrou de tanto rir e eu achando que ela estava dormindo...

Sim erramos também, e eu pessoalmente nunca vi nenhum colega chegar pra família do paciente e fazer como no seriado E.R., confessando toda culpa...Sim, nós também sentimos medo...
Então por que diabos você continua nisso até hoje? Acreditem, é apaixonante sobreviver fazendo aquilo que gostamos, o agradecimento da maioria dos pacientes por um resultado perfeito, até a chance fazer algo pelos que precisam nas cirurgias do SUS, e mais, o clima quase sempre alegre da sala de cirurgia, as piadas, as sacanagens. Acho que isso me faz levantar todo dia as 6 da matina, num frio do cacete, e seguir pra rua...

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