segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

   Minha vida dentro do centro cirúrgico não tem nem de longe o glamour das séries médicas americanas por uma pequena, insignificante característica de minha augusta pessoa: sou um tanto quanto azarado, desastrado se preferir. Ela me acompanha desde priscas eras, mais ou menos quando aprendi a andar e acreditem, não tem melhorado com a idade. Sempre fui aquele cara que chega derrubando bebida em restaurantes, tropeçando e catando cavaco ou lesionando a pessoa mais próxima de alguma forma. No colégio eu já rolei de escada, dei cabeçada na trave de futebol, levei bolada no saco tantas vezes que já cheguei a perder a consciência durante um jogo. Tive que aprender a lidar com isso depois da vida médica pra não matar ninguém e fui razoavelmente bem sucedido, o que não significa que eu não continue atentando contra minha própria vida. Se eu fosse um desenho animado, sem titubear me classificaria como o coiote do Papaléguas ou o Patolino.
   Resolvi, com uma pequena dose de bom humor, classificar os pequenos e grandes acidentes da vida do anestesista, muito comuns no meu dia a dia, além  de outras condições que deveriam gerar um dinheiro extra em nossa conta por insalubridade.

1) Cortar os dedos em ampolas: A gente que quebra ampolas o dia inteiro já está acostumado com os pequenos machucadinhos do dia a dia, daqueles que a mamãe no máximo ia dar um beijinho e falar "quando casar,sara...". O fato é que pelo menos uma vez por semana eu me corto, na maioria das vezes cortes comparáveis à entrada do aparelho reprodutor feminino ou o Grand Canyon. Sou o único anestesista que eu conheço que já teve que levar DOIS PONTOS no dedo após um acidente com ampola, o cirurgião que deu os pontos ainda comentou "porra, já vi ferimentos com facas menores que esse aí!!". E o fato de além de ser azarado, desastrado, não ter boa memória, esquecer rápido e fazer a mesma merda na semana seguinte não ajuda.

2) Dar cabeçada no foco cirúrgico: Esse eu sou campeão, já perdi a conta da quantidade de galos que tive que por gelo durante o trabalho. Dificilmente passo um dia sem dar 2 ou 3 cabeçadas enquanto a cirurgia não começa e eles estão perigosamente posicionados muito baixos, parece que são seres com vontade própria a espreita, silenciosos, prontos pra atacar seres inocentes que teimam em transitar próximos. Costumo dizer que se ser humano tivesse chifres, eu ia ter que colocar novos quase todo dia...não sei se essa frase ficou adequada, mas enfim...

Caiu, levanta!
3) Cair da cadeira de fazer bloqueios: Essa também só vi acontecer comigo, e não foi uma vez só. A gente se senta pra fazer anestesias condutivas (raque ou peridural), na lateral da cama, com acesso às costas do paciente. às vezes, em alguns lugares que você vai elas não são lá muito estáveis. Daí, pra um cara como eu, cair é mole. O tombo mais engraçado que eu já tomei foi numa maternidade, eu lembro que a grávida estava muito estressada, nunca tinha entrado no centro cirúrgico, chorava e apertava as mãos da enfermeira. Na hora que eu sentei, automaticamente emborquei pra trás com fé, soltei sem querer um potente "AI CARALHO", o que só serviu pra aumentar o nervosismo da mãe. Ainda ouvi ela perguntar se estava tudo bem com o bebê dela...

Acontece...
4) Miscelânea: Aposto que vocês nunca ouviram falar disso: Estava indo em direção à recuperação pós operatória e vinha uma enfermeira na minha direção, distraída, balançando os braços ao caminhar. Não sei como ela conseguiu acertar minha digníssima bolsa escrotal com aquela força, mas ela conseguiu. Aliás, no lugar onde ela bateu nem precisava de força, foi daquelas porradas milimetricamente calculadas pra derrubar qualquer ser do sexo masculino. Ajoelhei no chão de dor, lembrando das boladas da época da escola, vendo um monte de pontinho preto. Óbvio que ninguém acreditou na hora que fosse sério devido a meu histórico de filha da puta. Essa menina até hoje fica envergonhada na minha frente, ela era novata na época, tipo primeira semana de serviço, e claro que eu faço questão sempre de lembrá-la do episódio, passando perto dela e fingindo proteger com as mãos a zona atingida no episódio.
   Outro prodígio sensacional que eu consegui com muito esforço foi com boas intenções. Estava de plantão numa maternidade, na hora da troca de plantão da enfermagem, a auxiliar estava sozinha. Eu, bom moço querendo ajudar, disse que tirava uma paciente da sala cirúrgica sozinho, para que ela pudesse arrumar a tal sala pra outro procedimento. Passei a paciente pra maca, abri a porta de vidro com o pé enquanto empurrava a tal maca. Já adivinhou. né? A porta voltou com toda força na direção da maca e espatifou em milhares de pedaços o vidro, causando um respeitável prejuízo. A paciente dormia tranquila e nem se deu conta...

Eu depois da explosão...
5) Explosão do conteúdo de seringas: Muito comum em drogas diluídas na correria quando você faz mais pressão do que deveria ou a seringa é vagabunda, sou bom nessa também. Ficar com a cara cheia de  cefalotina "explodida" é quase diário, mas semana passada foi ors concours. Estava eu injetando um monte de porcaria no soro da paciente quando a circulante de sala, provavelmente movida por ódio ou desejo de vingança contra minha ilustre figura, tirou o suporte do soro do lugar e consequentemente desconectando minha seringa, estourou droga pra todo lado, inclusive DENTRO DOS OLHOS. Depois de um sonoro putaquepariucaralho, fui lavar o rosto, uma ardência do cacete...humpf...


Foto minha rindo de um colega
6)Cirurgião humorista: Do ponto de vista psicológico o fator gerador de insalubridade mais grave em minha opinião é ter que rir de alguns colegas que juram que são humoristas de stand up. Eu tenho um colega cirurgião que é tão chato que consta no Guiness Book como causador do maior suicídio coletivo após uma piada mal sucedida. O cara conseguiria constranger até o Bozo. Temos inclusive uma piada interna entre a gente que, se alguém pisar na bola, chamamos o tal fulano pra contar uma piada. A ameaça costuma surtir efeitos.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
parede de escudos
   Citando Richard Gordon, o homem descobriu a pólvora, e a pólvora inventou a cirurgia como nós a conhecemos. Mais ou menos no século XV, os golpes de espada e tiros de flecha foram superados por ela. Os tempos "românticos" das paredes de escudos, dos arcos longos, do corpo a corpo caminhavam para seu anti clímax.
  Como em vários segmentos da civilização, o advento da "linha de produção" da matança veio pra ficar. A escala industrial era derivada de um meio mais eficiente e bem menos trabalhoso de mutilar e matar, e levou à engenhosidade na aplicação, posterior diminuição do custo de produção de seus implementos. Determinou, praticamente sozinha, o fim da Guerra de Cem Anos e do Feudalismo europeu, assim como, mais tarde, confirmou a superioridade, em vários episódios, da minoria que a tinha contra uma maioria, exemplos a conquista dos Astecas por Cortéz, da África pelos europeus, dos índios norte americanos pelos colonizadores ingleses, do homem pela muher...esse não, sacangem...As diferenças logo se fizeram sentir na medicina, mais especificamente  na cirurgia. Uma espada abre no corpo um golpe limpo, enquanto um P.A.F(projetil de arma de fogo) tem como complicadores a carne queimada, porta aberta à infecções e corpos estranhos(chumbo) e tecido interiorizados.
   Durante a Dinastia Han, na China do século VIII, alquimistas taoístas , ao perquisar um "elixir da imortalidade" produziram vários incêndios ao fazer testes com enxofre e salitre (nitrato de potássio). No final da Dinatia Tang, foi descoberta a combinação de salitre, enxofre e carvão, e foi inicialmente usada em fogos de artifício e sinalizadores. Depois foram inventadas granadas de mão simples, lançadas no inimigo através de catapultas. Em 1126 d.C., um oficial chamado Li Gang registrou a defesa da cidade de Kaifeng com o uso de canhões, que causou um grande número de vítimas numa tribo de saqueadores.
   Vou apresentar algumas figurinhas que deram grandes contribuições para cirurgia de uma forma geral, nesse período que sucedeu o advento das armas de fogo:



1) Dominique Jean Larrey(1766-1842): Cirurgião chefe da "Grand Armée" de Napoleão Bonaparte. General Médico, nascido em 1766, sua contribuição mais conhecida foi a ambulância voadora, uma caixa leve sobre duas rodas, puxadas por 2 cavalos, para retirar feridos do campo de batalha, ao invés de deixá-los morrer até a luta terminar. Foi a primeira ambulância de que se tem notícia. Com técnicas e equipamentos de hemostasia, perfilando os cavalos, diminuindo as rodas e curvando o telhado para evitar acúmulo de água e peso, abrindo janelas de ventilação, acoplando macas retráteis e kits de primeiros socorros, conseguiu dar grande agilidade à invenção.(foto no final do post) Larrey tinha fama de ser um cirurgião extremamente eficiente, diz-se que chegou a fazer 200 amputações por dia em Borodino. Foi considerado o primeiro cirurgião de guerra moderno, criou também vários instrumentos e equipamentos úteis para médicos em batalhas.

Charles Bell
2) Sir Charles Bell(1774-1842): Anatomista e cirurgião famoso, responsável pela separação dos nervos sensores dos motores, uma das descobertas mais importantes da anatomia fisiologia humanas, ele é conhecido pela Paralisia de Bell, uma paralisia facial relativamente comum. O livro "Uma ideia de uma nova anatomia do Cérebro" foi fundador da neurologia clínica moderna.
   Em ambientes de guerra, era um cirurgião incansável, operava amigos e inimigos com mesmo afinco, dormia 2 horas por noite. De seu diário:
"É impossível descrever o quadro de miséria humana que eu tinha sempre ante meus olhos. Enquanto eu amputava a perna de um homem na altura da coxa, 13 outros feridos esperavam para serem operados...Era estranho sentir minha roupa engomada com sangue e meus braços exaustos com esforço de manejar o bisturi..."


Thomas " Test",  feito pelo próprio
3) Hugh Owen Thomas(1843-91): Clínico geral de bairros pobres de Liverpool, ficou famoso por desenhar a tala para imobilizações de fraturas compostas de fêmur, um dispositivo simples em sua concepção, mas que diminuiu a mortalidade destas fraturas de 80% para 20%.

4) Nikolai Pirogov(1810-81): Cirurgião militar, que como Florence Nightingale na Criméia, insistia em medidas de maior conforto para os médicos e introduzindo enfermeiras de guerra, num local dominado pelo sexo masculino. Um dos fundadores do "field surgery", foi também um dos primeiros europeus a utilizar éter como anestésico para as cirurgias.

5) Friedrich von Esmarch(1823-1908): Cirurgião alemão, inventou aquela famosa faixa de borracha para retirar todo sangue da circulação da perna, facilitando e muito a vida do cirurgião. Dispostivo de uma simplicidade impressionante, baseia-se no conceito do torniquete, mas faz total exanguinação do membro antes de instalar a isquemia(torniquete).

Ambulância voadora, de Larrey
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Ibn Sina (Avicena)
    Estava relendo pela trigésima vez o clássico de Noah Gordon, O Físico, aliás sou dos que acha que a tradução do original “The Phiysician” foi um erro, ficaria muito mais fidedigno “O médico”  ou “O Clínico”, por mais explicações forçadas que dêem para o título em português. Bom, o livro trata da epopéia de um médico na Idade Média, da Inglaterra a Pérsia, um dos berços da Medicina (acreditem, aquela região já prestou, e muito!), onde tem aulas com o próprio Avicena em pessoa. Pra quem não sabe, Ibn Sina  é um dos mais célebres filósofos e médicos da Pérsia medieval, era também astrônomo, químico, geólogo, paleontólogo e professor. Uma pena realmente que uma civilização tão avançada tenha dado origem a um país como o Irã, mas isso fica pra outro post.
   Conhecendo um pouco da realidade da Medicina de outras épocas me fez refletir no como eu sou feliz viver na época atual, e ás vezes quando ouço alguém reclamando de uma dor fraca ou ansiedade ou da espera por uma consulta de convênio, gostaria de apresentar um pouco dessa história pro mimizento. Não quero dizer com isso que devamos nos conformar com essas coisas só por causa do Passado, mas talvez pudéssemos encarar com outros olhos o tratamento médico atual . E foi a idéia desse texto, dar uma pincelada em alguns causos ou histórias e comparar com o que aconteceria hoje em dia.
   Pra começar, um trecho do próprio livro de Noah Gordon, sobre uma patologia hoje simplérrima, a catarata:
Facoemulsificador
Depois de conversar com o médico judeu Benjamin Merlin de Stafford, Rob se dirigiu para um povoado de Leicestershire onde sabia que Master Merlin havia operado um homem de catarata.

O povoado onde Rob estava era tão pequeno que nem tinha uma taverna (...) O trabalhador que estava mais perto da estrada interrompeu o movimento ritmado de ceifar para informar onde ficava a casa de Edgar Thorpe.

Rob percebeu imediatamente que Thorpe enxergava
(...) – estou aqui para fazer umas perguntas sobre a operação que restituiu sua visão porque tenho um parente que quer se tratar.
(...) Thorpe tomou um gole de bebida e suspirou.
- Espero que seu parente que quer fazer o tratamento seja um homem forte, com muita coragem.
Amarraram-me as mãos e os pés numa cadeia. Presilhas cruéis rodeavam minha cabeça, pendendo-a à cadeia de espaldar alto.Tinha tomado muitas doses e estava quase insensível com tanto álcool, mas então puseram um ganchinhos embaixo das minhas pálpebras, seguros por assistentes para que eu não piscasse. A minha doença era tão grave que eu só via os vultos na minha frente. Master Merlin segurava uma lâmina que ficava maior à medida que a mão descia, até cortar meu olho.
A dor fez evaporar todo efeito do álcool. Eu estava certo que meu olho tinha sido arrancado e não só a nuvem que o embaçava. Quando cortou o outro olho a dor foi tamanha que perdi a consciência. Acordei na escuridão dos meus olhos vendados e por quase quinze dias sofri horrores. Mas afinal consegui enxergar como não enxergava Há muito tempo...”

Cirurgia de facoemulsificação
Nos dias atuais, com uma anestesia tópica (colírio), o oftalmologista faz uma incisão milimétrica na córnea, e através de um aparelho chamado facoemulsificador, “dissolve” a catarata e a aspira, colocando no lugar uma lente intraocular que faz as vezes do cristalino. O paciente é submetido a uma sedação leve, levanta-se e vai embora na mesma hora. O pós operatório é praticamente indolor, e se houver dor, um analgésico comum costuma resolver. Diferente, não?


    Visita em enfermaria fictícia mas possível em uma faculdade de Medicina Inglesa do Séc XVIII:
“O cirurgião famoso passava em visita aos leitos seguido por seu séquito de alunos ansiosos por absorver qualquer pequena pérola de sabedoria do renomado professor. Ele era famoso por ser um dos cirurgiões mais rápidos da Inglaterra, condição essencial num mundo sem anestesia. Dizia-se que conseguia fazer uma amputação de perna em menos de 3 minutos. Um dos pacientes era um senhor  com um volumoso tumor de língua. Ele não titubeou, ali mesmo retirou o bisturi do bolso da casaca e, com a ajuda de um dos pupilos, decepou em um só golpe a lesão e parte da língua. O sangramento e o choque que se seguiu à cirurgia foram suficientes para matar o pobre homem, em meio a gorgolejos convulsivos no chão. A visita então continuou no leito seguinte após breve olhar de lamento do médico...”
Após exames pré operatórios e sedação Pré anestésica, o paciente seria submetido a anestesia geral e, após a cirurgia, extubado e levado a recuperação, já tendo tomado analgésicos e anti eméticos(drogas para não enjoar). Pós operatório tranqüilo apenas com analgésicos fracos.

Daí você fala: “Ah, mas comparar os dias atuais com o tempo anterior a anestesia é moleza. Depois dela tudo mudou, certo?” Errado! Caso 3(verídico):
“A cirurgia de amigdalectomia transcorria normalmente no paciente de 4 anos de idade, quando o cirurgião informou ao anestesista que o sangue estava com coloração escurecida. Ato contínuo o anestesista sentiu o pulso da criança diminuir e ficar filiforme. Interrompida a cirurgia, já em parada cardiorrespiratória, mudado  modo ventilatório e oxigênio a 100%, realizadas manobras usuais de ressuscitação com sucesso. Criança depois encaminhada a UTI, onde permaneceu até alta pra casa, com seqüelas  neurológicas graves, como afasia (incapacidade de falar) e distúrbios motores. Morreu um tempo depois por pneumonia, conseqüência de imobilidade prolongada e problemas respiratórios. O caso é da década de 1970”
   Hoje, com monitorização de oxigenação sanguínea(oximetria), cardíaca através de monitor, pressão arterial e capnografia(monitor de CO2) a queda de oxigenação e pulso seria percebida no início, dando tempo ao profissional de tomar as medidas cabíveis antes da deterioração do quadro. Essa é a monitorização padrão de qualquer anestesia geral. O problema no caso foi defeito em uma simples válvula do sistema respiratório.

Da próxima vez que você for ao médico, dê um grande abraço no cara e diga que você está muito feliz de viver em 2011...
   
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
   A formação do médico é um somatório de conhecimentos técnicos, aulas práticas de psicologia e sociologia, exemplos de comportamento exemplares ou claramente equivocados. Nesses últimos, entra a formação ética/psicológica que veio de sua casa, o que aproveitar e o que descartar da miríade de seres que você conhece nos plantões da vida, que eu gosto de chamar de zoológicos.
Doc Brown
   Você acaba cruzando com pessoas que os mais crédulos numa entidade superior acreditariam que foram colocadas no seu caminho de propósito, para que você aprendesse alguma lição em sua vida. Alguns  marcam o nosso jeito posterior de agir, de nos comportarmos. O Dr. Ligadão era um cara desses.
   Dr. Ligadão era o cirurgião geral de um desses inúmeros plantões que eu dei como acadêmico durante a faculdade em pronto socorro. Tinha esse apelido nas internas porque  simplesmente não dormia. Por não dormir, entendam no sentido literal. Ele não ficava insone somente durante nossos noitadas na emergência, segundo ele, dormia mais ou menos 2 ou 3 horas a cada 3 dias. Os olhos eram meio esbugalhados, calvo, lembrava um pouco o Doc Brown, personagem do Cristopher Loyd no De Volta para o Futuro. Tragava quantidades rubembragueanas daquele cigarro Minister (nem sei se ainda existe...), sentado em sua mesinha na sala de conforto médico do pronto socorro a madrugada inteira, lendo, conversando com os plantonistas do horário que ficavam acordados, ensinando acadêmicos e residentes técnica operatória.
   Aliás, tinha uma paciência infinita pra ensinar, infinita mesmo. Tinha predileção por acadêmicos de terceiro ano (nós...), que não tinham os conhecimentos mais básicos de porra nenhuma e ensinava o beabá da cirurgia, ficava com a gente na sala de sutura e chamava pra auxiliar cirurgia, explicando todos os passos. Seu tratamento para com os pacientes e colegas era exemplar, desde que a recíproca fosse verdadeira. Quer um exemplo? Uma colega nossa de plantão, viciada em dolantina, foi flagrada desmaiada no quarto feminino com seringas e ampolas por perto. Após a total recuperação do episódio, num outro plantão, Dr. Ligadão expôs a moça a uma das maiores humilhações públicas que eu já presenciei, esporro daqueles pra colocar nos anais da esporrologia moderna. Ela chorou muito, prometeu parar. Algum tempo depois fiquei sabendo que tinha se matado em seu apartamento no Rio, overdose. Se ele ficava sabendo de algum dos estudantes que fumasse baseado, lá vinha esporro também.
Barão de munchhausen
  Outro lance famoso que ilustra bem sua dúbia personalidade aconteceu na famosa salinha de sutura, ele e uma acadêmica novata aprendendo a suturar num bandido do morro próximo, completamente transtornado por cocaína. Durante o aprendizado da menina, o paciente começou a insultá-la, "puta" era o termo mais simplório utilizado. Ligadão puxou a pistola que ele não abandonara após se reformar do exército e aplicou uma respeitosa coronhada na cabeça do coitado, abrindo mais uma lesão QUE A PRÓPRIA MENINA SUTUROU. Muito tempo depois a gente brincava com ela, dizendo que como a sutura dela não estava boa, o Ligadão produziu mais um corte suturável pra ela treinar mais. Esse episódio terminou num daqueles processos administrativos internos que são devidamente engavetados. O traficante, óbvio, não prestou queixa (aliás, do jeito que estava travado, nem dor deve ter sentido...), e o Ligadão aproveitou a coronhada e disse que se ele abrisse mais a boca pra xingar alguém no plantão dele, ele não ia bater, ia atirar. Ninguém duvidava.
   Contava  causos dignos de um pescador. Dizia que já tinha entubado um paciente em parada respiratória sem usar laringoscópio, mais ou menos como veterinários entubam cachorros para operar. Se eu fosse falar aqui de todas as vezes que ele me contou que abrira pacientes na sala de emergência  (1) com intervenções heróicas, daria outro post. Detalhe: seus pacientes das histórias sempre se salvavam. Eu gostava de compará-lo àquele célebre personagem das fábulas, Barão de Munchhausen, (fizeram até um filme...), que o Monteiro Lobato gostava de colocar nos livros do Sítio do Picapau Amarelo, famoso por ser um PUTA mentiroso, que sempre dava um jeito de se dar bem. O problema é que quando você via o cara no dia a dia, começava a acreditar nas suas peripécias.
   Senti muita falta dele depois que acabei aquele estágio. Fui até cúmplice dele numa das sacanagens que ele aprontou com um colega. Foi mais ou menos assim: esse colega era o cara mais chato que eu já tinha conhecido, uma mala sem alça. Nesse plantão ele tinha comprado uma coca de 2 litros e deixado na geladeira, o Ligadão tinha aberto e tomado um copo. O cara fez um escarcéu tamanho que o Ligadão foi no bar em frente ao hospital e comprou outra coca igual, pôs uma etiqueta com o nome do cara na garrafa e colocou na geladeira. Me pediu que roubasse um Lasix (2) no PS e, depois de distrair o cara,  mandou colocar o conteúdo da ampola inteiro na garrafa. Não preciso nem contar quantas vezes ele foi no banheiro urinar naquela noite e eu neguei até a morte participação naquilo...
   Quando fui ao Rio, já morando em São José, anos depois, correndo na rua, encontrei um colega do plantão, no Grajaú. Perguntei do Ligadão e ele me contou que o câncer de pulmão o tinha levado , naquele ano. Pagou o preço dos milhares de cigarros de sua vida. Dessa vez nosso Barão de Munchhausen não tinha conseguido se safar...Vai em paz, xará, pro céu dos mentirosos...


Notas do autor: 1) Fazer toracotomias de urgência no PS é um procedimento heróico, pouco utilizado, feito quando não se tem alternativa. Por exemplo realizado na Lady Di na noite de sua morte, em 1997.

2) Diurético potente, nome farmacêutico: furosemida.

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Médico, anestesista, ateu e peão

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