terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
   A formação do médico é um somatório de conhecimentos técnicos, aulas práticas de psicologia e sociologia, exemplos de comportamento exemplares ou claramente equivocados. Nesses últimos, entra a formação ética/psicológica que veio de sua casa, o que aproveitar e o que descartar da miríade de seres que você conhece nos plantões da vida, que eu gosto de chamar de zoológicos.
Doc Brown
   Você acaba cruzando com pessoas que os mais crédulos numa entidade superior acreditariam que foram colocadas no seu caminho de propósito, para que você aprendesse alguma lição em sua vida. Alguns  marcam o nosso jeito posterior de agir, de nos comportarmos. O Dr. Ligadão era um cara desses.
   Dr. Ligadão era o cirurgião geral de um desses inúmeros plantões que eu dei como acadêmico durante a faculdade em pronto socorro. Tinha esse apelido nas internas porque  simplesmente não dormia. Por não dormir, entendam no sentido literal. Ele não ficava insone somente durante nossos noitadas na emergência, segundo ele, dormia mais ou menos 2 ou 3 horas a cada 3 dias. Os olhos eram meio esbugalhados, calvo, lembrava um pouco o Doc Brown, personagem do Cristopher Loyd no De Volta para o Futuro. Tragava quantidades rubembragueanas daquele cigarro Minister (nem sei se ainda existe...), sentado em sua mesinha na sala de conforto médico do pronto socorro a madrugada inteira, lendo, conversando com os plantonistas do horário que ficavam acordados, ensinando acadêmicos e residentes técnica operatória.
   Aliás, tinha uma paciência infinita pra ensinar, infinita mesmo. Tinha predileção por acadêmicos de terceiro ano (nós...), que não tinham os conhecimentos mais básicos de porra nenhuma e ensinava o beabá da cirurgia, ficava com a gente na sala de sutura e chamava pra auxiliar cirurgia, explicando todos os passos. Seu tratamento para com os pacientes e colegas era exemplar, desde que a recíproca fosse verdadeira. Quer um exemplo? Uma colega nossa de plantão, viciada em dolantina, foi flagrada desmaiada no quarto feminino com seringas e ampolas por perto. Após a total recuperação do episódio, num outro plantão, Dr. Ligadão expôs a moça a uma das maiores humilhações públicas que eu já presenciei, esporro daqueles pra colocar nos anais da esporrologia moderna. Ela chorou muito, prometeu parar. Algum tempo depois fiquei sabendo que tinha se matado em seu apartamento no Rio, overdose. Se ele ficava sabendo de algum dos estudantes que fumasse baseado, lá vinha esporro também.
Barão de munchhausen
  Outro lance famoso que ilustra bem sua dúbia personalidade aconteceu na famosa salinha de sutura, ele e uma acadêmica novata aprendendo a suturar num bandido do morro próximo, completamente transtornado por cocaína. Durante o aprendizado da menina, o paciente começou a insultá-la, "puta" era o termo mais simplório utilizado. Ligadão puxou a pistola que ele não abandonara após se reformar do exército e aplicou uma respeitosa coronhada na cabeça do coitado, abrindo mais uma lesão QUE A PRÓPRIA MENINA SUTUROU. Muito tempo depois a gente brincava com ela, dizendo que como a sutura dela não estava boa, o Ligadão produziu mais um corte suturável pra ela treinar mais. Esse episódio terminou num daqueles processos administrativos internos que são devidamente engavetados. O traficante, óbvio, não prestou queixa (aliás, do jeito que estava travado, nem dor deve ter sentido...), e o Ligadão aproveitou a coronhada e disse que se ele abrisse mais a boca pra xingar alguém no plantão dele, ele não ia bater, ia atirar. Ninguém duvidava.
   Contava  causos dignos de um pescador. Dizia que já tinha entubado um paciente em parada respiratória sem usar laringoscópio, mais ou menos como veterinários entubam cachorros para operar. Se eu fosse falar aqui de todas as vezes que ele me contou que abrira pacientes na sala de emergência  (1) com intervenções heróicas, daria outro post. Detalhe: seus pacientes das histórias sempre se salvavam. Eu gostava de compará-lo àquele célebre personagem das fábulas, Barão de Munchhausen, (fizeram até um filme...), que o Monteiro Lobato gostava de colocar nos livros do Sítio do Picapau Amarelo, famoso por ser um PUTA mentiroso, que sempre dava um jeito de se dar bem. O problema é que quando você via o cara no dia a dia, começava a acreditar nas suas peripécias.
   Senti muita falta dele depois que acabei aquele estágio. Fui até cúmplice dele numa das sacanagens que ele aprontou com um colega. Foi mais ou menos assim: esse colega era o cara mais chato que eu já tinha conhecido, uma mala sem alça. Nesse plantão ele tinha comprado uma coca de 2 litros e deixado na geladeira, o Ligadão tinha aberto e tomado um copo. O cara fez um escarcéu tamanho que o Ligadão foi no bar em frente ao hospital e comprou outra coca igual, pôs uma etiqueta com o nome do cara na garrafa e colocou na geladeira. Me pediu que roubasse um Lasix (2) no PS e, depois de distrair o cara,  mandou colocar o conteúdo da ampola inteiro na garrafa. Não preciso nem contar quantas vezes ele foi no banheiro urinar naquela noite e eu neguei até a morte participação naquilo...
   Quando fui ao Rio, já morando em São José, anos depois, correndo na rua, encontrei um colega do plantão, no Grajaú. Perguntei do Ligadão e ele me contou que o câncer de pulmão o tinha levado , naquele ano. Pagou o preço dos milhares de cigarros de sua vida. Dessa vez nosso Barão de Munchhausen não tinha conseguido se safar...Vai em paz, xará, pro céu dos mentirosos...


Notas do autor: 1) Fazer toracotomias de urgência no PS é um procedimento heróico, pouco utilizado, feito quando não se tem alternativa. Por exemplo realizado na Lady Di na noite de sua morte, em 1997.

2) Diurético potente, nome farmacêutico: furosemida.

1 comentários:

Fernanda Pereira disse...

Eu ri, muito do Dr. Ligadão e das histórias e precisei parar pra tomar folego na parte da coronhada e da Coca Cola...kkkkkkkkkkkk

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Médico, anestesista, ateu e peão

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