segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Vida na trincheira.
    "À madrugada gelada daquele primeiro de julho seguiu-se talvez a primeira refeição quente que aqueles homens comiam em dias. Dali a alguns momentos eles entrariam para a história como o maior desperdício de vidas humanas registrado numa guerra. O ano era 1916, o lugar era o setor norte da frente do Rio Somme, França, próximo a Monchy-au-Bois. A idéia, simples na concepção, era primeiro avançar a artilharia pesada para destruir o máximo de alemães e trincheiras possível, seguido de corrida para tomar essas posições e depois, cavalaria. À mim, como oficial-médico, cabia esperar nas posições britânicas mais avançadas, tentar dar algum tipo de atendimento aos feridos que chegassem e coordenar depois a evacuação destes  para hospitais de campanha, que seria feito através de trincheiras de comunicação com a retaguarda.
Lança chamas
   A vida naqueles buracos era absolutamente insalubre. A ração diária de pão, biscoitos, legumes e carne (enlatados) mal supria as necessidades básicas, as latrinas eram buracos de 1,5m de profundidade, que quando cheias eram cobertas de terra. Ratos, que proliferavam dos sepulcros improvisados próximos às trincheiras, causavam doenças como se já não bastasse os feridos por armas de fogo, intoxicados com gás cloro ou queimados por lança chamas, além da cólera e disenteria. Muitos ficavam loucos, se feriam propositalmente para serem  mandados de volta, ou simplesmente saíam andando de peito aberto em direção ao inimigo, que poria fim às suas vidas miseráveis com salvas de metralhadoras.
   Aproximadamente às 6:30h começou o apocalipse. Parecia que todos os exércitos de todos os 8 círculos do Inferno tinham despertado, o cheiro característico de urina, fezes das vísceras expostas e da latrina, pólvora e desgraça. De minha posição, com o passar do tempo, comecei a ter a impressão que a estratégia  não poria fim ao impasse(1). O dia transcorreu, o final da manhã trouxe a primeira leva de feridos, e mesmo assim somente os que tinham alguma chance, os mais graves eram deixados junto aos mortos para terem o mesmo fim. Os soldados eram instruídos a não socorrer colegas feridos, cada um devia cuidar de si até a chegada dos padioleiros.
Médicos de campanha
    Eu fazia o possível junto com os outros, até o meio da tarde realizei 3 amputações dentro da própria trincheira, usando apenas uma pequena dose da Syrete(2), pois o esgotamento físico fazia o restante da anestesia. Perto do por do sol, no limite da minha sanidade, os carregadores trouxeram alguém aos prantos, com as mãos sobre o peito deixando entrever a hemorragia.
   Me aproximei e constatei, embasbacado que era praticamente uma criança, devia ter uns 12 anos. Após breve ausculta, tentei drenar seu tórax, ele quis falar alguma coisa mas só saíram gorgolejos de sua boca, o sangue vivo brotou da tosse convulsiva e seus olhos vidraram . Puta que pariu, como foi que aquele moleque tinha conseguido se alistar? Provavelmente fugira de casa e mentira a idade. Mal tinha meia dúzia de fios no rosto juvenil, os sonhos de heroísmo detonados por estilhaços. Tirei sua identificação e o pequeno crucifixo que ele tinha no peito, prometi a mim mesmo achar sua família  e devolver o que sobrou do seu filho.
   Devastado, iniciei depois a evacuação dos feridos para a retaguarda..."

Notas do autor:

(1) A Batalha do Somme, na primeira guerra mundial, foi a maior carnificina da história do exécito britânico. Só em primeiro de Julho de 1916, os britânicos sofreram 57.470 baixas (19.240 mortos). No total foram 1,2 milhão de vítimas (entre mortos e feridos), em cinco meses de combate.


(2) Syrette era como um tubo de pasta de dente em miniatura que continha a morfina. O Syrette tinha uma agulha acoplada ao tubo que era utilizada para perfurá-lo e evitar a superdosagem.


Correria
Cemitério do Somme

1 comentários:

Nat's disse...

Muuuuuuito bom! Parecia que eu estava vendo um filme!
Estou no aguardo da parte II! hahahahahhahaha
Bjos

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Médico, anestesista, ateu e peão

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