quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Só o trabalho liberta
   "Fui transferido para Aushwitz no final daquele ano de 1943, segundo meu comandante eu faria parte como cirurgião de trabalhos científicos naquele campo. Os médicos chefes alemães aos quais eu seria subordinado eram  Joseph Mengele e Carl Clauberg, entre outros, e segundo meus superiores, minha perícia e rapidez cirúrgicas seria essenciais no auxílio a esses trabalhos. Óbvio que eu não fazia idéia do que eu realmente encontraria ali e nada tinha me preparado para aquilo. Eu tinha sido originalmente designado para realizar ooforectomias(1), cirurgia bastante simples, mas que eu não via nenhum propósito serem realizadas em ambiente militar, até descobrir o que realmente estava sendo feito e os resultados que se procuravam.
  Do pórtico de entrada do campo, onde se lia que só o trabalho liberta, até a execução da maioria das experiências conduzidas ali, tudo era dissimulação e mentira. Desde a chegada dos prisioneiros, conduzidos como gado, passando pelo "preenchimento" de formulários em ambientes com altas de doses de radiação(para esterilizá-los), até a simples execução em câmaras de Zyklon B (2). Entrei em desespero, puro e simples desespero, mas tive a impressão de que poderia fazer alguma coisa para diminuir o sofrimento daquelas criaturas, não sei se só por piedade, mas uma forma de ser auto indulgente, de tentar diminuir a vergonha que eu sentia por ter traído a memória de meus pais e trabalhar como colaboracionista.
Vítima de experiência nazista
   Conversando depois com oficiais alemães e colegas poloneses, fiquei sabendo que experiências médicas com cobaias judias, podemos chamar assim, eram disseminadas pela maioria dos campos de concentração da Polônia. Eram bem conduzidas, dentro do rigor científico e estatístico (3), e eram de maneira geral divididas em 3 categorias:
   Em primeiro lugar experiências que visavam a sobrevivência de oficiais do próprio Eixo.  Em Dachau, por exemplo, oficiais médicos da Força aérea alemã realizaram experimentos sobre reações à altitude, usando câmaras de baixa pressurização, para determinar a altitude máxima da qual as equipes de aeronaves danificadas poderiam saltar de pára quedas, em segurança. Também experimentos com congelamento, usando prisioneiros como cobaias para descobrir método eficaz de tratamento de hipotermia, além de outros para testar vários métodos de transformação de água marinha em potável. Desnecessário dizer o número de mortes durante a condução destes experimentos
Cigano
  Em segundo, desenvolver e testar medicamentos, além de métodos de tratamento para ferimentos e enfermidades. Nos campos de Sachsenhausen, Dachau, Natzweiler, Buchenwald e Neuengamme, foram testados agentes imunizantes e soros para tratar e prevenir doenças como malária, tifo, tuberculose, febre amarela, hepatite, inoculando os prisioneiros com tais doenças. Em Ravensbrueck foram feitos experimentos cruéis com enxertos ósseos, além de testarem a sulfonamida, a custa de muitas vidas. Em Natzweiler e Sachsenhausen, prisioneiros foram sujeitos aos perigosos gás mostarda e fosgênio.
Crianças de Mengele
  Por último, experiências que buscavam aprofundar os princípios raciais e ideológicos da visão nazista. As mais infames foram as de Joseph Mengele, em Aushwitz, que utilizou gêmeos, crianças e adultos, além de experiências  sorológicas em ciganos, querendo demonstrar diferentes comportamentos frente a doenças nas diferentes "raças".
  Foi num desses dias macabros que eu inesperadamente conheci meu fim. Ia começar o dia operando uma prisioneira do campo. Eu costumava fazer raquianestesia, embora nem todos concordassem em utilizar qualquer tipo de anestesia. Convenci-os, de maneira dissimulada, que aplicar anestesia facilitaria os procedimentos, pois os "pacientes" se mexeriam menos e fariam menos barulho do que simplesmente amarrá-los, como era hábito da maioria. Na verdade eu queria acabar com o sofrimento daqueles miseráveis, ao menos diminuir.
Cirurgias em Aushwitz
  Tinha iniciado a intervenção, quando a prisioneira começou a balbuciar alguma coisa ininteligível, talvez consequência do barbitúrico que eu aplicava antes de iniciar a anestesia. Um dos soldados presentes, rindo, aplicou uma violenta coronhada na cabeça da paciente, mandando que se calasse, e gargalhando depois de constatar que sua atitude tinha despertado risos nos outros. Cheguei ao limite, não suportava mais aquela covardia, minha mente açoitada por pensamentos de vingança, virei-me, puxei a Lugger P08(4) do coldre do soldado, encostei em sua têmpora e puxei o gatilho. Foi tudo muito rápido, como um sonho...o cérebro dele voando aos pedaços pela sala junto com o spray de sangue vivo, os gritos e xingamentos, a confusão de tiros em minha direção...fui praticamente metralhado por 3 ou 4 Luggers, mas ainda tive tempo de esboçar um sorriso antes de desabar no chão, inerte.
   Uma grande lição para toda humanidade foi tirada desses dias sombrios, e que se espera que não se repitam,  toda sordidez humana disfarçada de ideologia, toda sua desumanidade disfarçada de guerra. Não foi somente uma guerra, foi uma covardia sem precedentes. O neófito que criou o termo genocídio foi extremamente feliz em sua idéia."


Notas do autor:

(1) Cirurgia para retirada dos ovários.


(2) Zyklon B era a marca registrada de um pesticida a base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio que foi utilizada pelos nazistas como veneno no assassinato em massa por sufocamento nas câmaras de gás, era ativado em contato com ar.

(3) Ainda hoje se discute sobre se utlizar os resultados desses experimentos, que foram realmente bem conduzidos do ponto de vista científico, exceto é claro sua parte ética.

Lugger P08
(4) Principal pistola adotada pelo exército alemão, depois de 1908(daí seu nome), é considerada o maior souvenir da Segunda Guerra Mundial.










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