segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
   "Estou morto.
Provavelmente isso é tudo que aqueles dois oficiais nazistas precisariam saber, além de proferir imprecações sobre como remover meu corpo dali e limpar toda aquela sujeira. Decisões que tomei em minha vida me levaram a morrer dessa forma estúpida, decisões das quais me arrependo. Bom, vou começar do começo.

Região dos pogroms
   Meu nome é(ou costumava ser...) Mordechai ben Eliezer, sou de família judia russa, nascido em Kishinev(1), Sul da Rússia. Ser judeu nessa região do Império russo no final do século XIX e início do XX definitivamente não era um bom negócio. A política czarista era abertamente anti-semita, seja através dos pogroms que estavam acontecendo desde 1881, até a falsificação e publicação dos famigerados "Protocolos dos Sábios de Sião"(2). O Governo apoiava essa política com dois objetivos principais: diminuir drasticamente a população judia o mais rápido possível e desviar o ódio popular, principalmente camponês, a fim de controlar a onda revolucionária que desembocaria, em 1917, na Revolução Comunista.
Barbárie...
   Pogrom significa, em russo, "tempestade" ou destruição", o termo se encaixa perfeitamente nesse tipo de ação, provavelmente governamental, que foi lançada sobre a população judia, de saques, assassinatos e outras selvagerias indizíveis, desde que o czar Alexandre II faleceu e o novo czar, Alexandre III assumiu o poder. Este cancelou várias regalias dadas aos judeus, que tinham levado a região a um grande crescimento econômico anos antes, e iniciou a perseguição através da figura de Pobedonostzev, um reacionário ultra nacionalista, procurador do Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa. 
  Os pogroms já aconteciam desde 1881, mas meu pai, que era dono de uma loja de secos e molhados na cidade, achava que nunca nada atingiria sua família. Levávamos uma vida confortável pra os padrões da época, minhas duas irmãs e minha mãe trabalhavam com meu pai, eu era muito pequeno naquele fatídico ano de 1903. Sob o domínio russo, a cidade tornara-se um ativo centro comercial e industrial, atraindo judeus de outras partes da Rússia, em busca de trabalho.
Judeu espancado em Kishinev
  A merda toda teve início em fevereiro daquele ano, depois da morte de um menino cristão chamado Michael Ribalenko. Mesmo com a suspeita de que tinha sido um parente seu o autor do assassinato, comprovado mais tarde, o filho da puta do chefe de polícia local começou a espalhar o boato de que tinham sido os "judeus". Foi orquestrada nos jornais uma campanha de difamação sem precedentes, até que o estopim da violência foi forjado: o suicídio de uma jovem cristã, paciente de um hospital da cidade. Claro que tanto o assassinato quanto o suicídio nada tinham a ver conosco, mas isso só veio a público depois do início das ações. 
Refugiados dos Pogroms
   Às vésperas da Páscoa, o inevitável aconteceu. Primeiro de forma isolada, alguns espancamentos ou estupros, até a generalização do massacre. Meu pai, no decorrer de algum tempo, tinha escondido no porão da casa a maior parte de sua riqueza e isso foi nossa salvação. Ele chegou em casa com um olhar vidrado, vazio, ordenando à minha mãe que juntasse o maior número de pertences possível, estávamos fugindo para Varsóvia, Polônia, onde ele tinha alguns parentes. Minha mãe então perguntou, já pressentindo a desgraça, onde estavam minhas irmãs. Meu pai parecia um alucinado, juntando dinheiro, jóias, menorahs(3), então minha mãe entendeu o que tinha acontecido com elas. Não sei onde ela achou forças para a fuga, somente muito tempo depois, longe dali, eles desabariam em choro convulsivo e prestariam as homenagens fúnebres às minhas irmãs. Minha mãe nunca mais quis saber o que tinha acontecido, mas eu sim: foram estupradas e mortas em plena rua, enquanto a loja do meu pai era saqueada e destruída. 
  Uma parte do dinheiro de meu pai foi entregue ao chefe de polícia, para que ele fizesse vista grossa sobre nossa fuga, o que fez com que fugíssemos com poucos pertences mais objetos de uso pessoal e religioso. Tudo isso meu pai me contou em detalhes, em Varsóvia. Meus pais vieram a falecer alguns anos depois, acho que de desgosto, deixando grande parte de minha criação a cargo de um primo.
   Tinha resolvido adotar um nome não judeu, pois a Polônia era também em grande parte anti-semita e eu seguia carreira no exército como oficial médico especializado em cirurgia, me sentia obviamente muito mais polonês que russo. Não tinha sequer conhecido minha pátria natal.(CONTINUA)


Notas do autor:
   
(1) Durante o séc XIX, Kishinev era capital da Bessarábia. Atualmente é capital da República da Moldávia, parte da ex União Soviética.
(2) Texto, surgido, originalmente, em idioma russo, supostamente alega-se terem sido forjados em 1897 pela Okhrana (polícia secreta do Czar Nicolau II), que descrevia um projeto de conspiração para que os judeus atingissem a dominação mundial.
Menorah
(3) Castiçal tradicional judeu.

1 comentários:

Edilene Ruth disse...

Esse período da história é bem pesado... tô esperando próximo capítulo da novelinha.

Beijinho, Edilene

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Médico, anestesista, ateu e peão

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