quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Primeira incursão na ficção, peço a quem ler que, se achar uma bosta, ser indulgente com um iniciante. Esse conto é baseado livremente numa lenda urbana que circula desde sempre nos hospitais do Rio de Janeiro, não tenho como saber se realmente aconteceu...
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    "Fazia mais de uma hora que ele estava sentado no chão daquela despensa, imóvel, as mãos na cabeça, balançando pra trás e pra frente, numa espécie de catarse induzida pelo choque e pelo ódio. Já tinha gritado, esmurrado a porta, se machucado até, e nada. Ninguém acudia. Do outro lado da porta, já não se ouviam mais os gritos e súplicas de sua mulher e sua filha de 8 anos, nem as palavras pejorativas dos dois assaltantes. Mortas. 'Pelo menos não estavam sofrendo mais...'.
    A causa mortis de ambas foi dada como asfixia mecânica, e um sem contar de lesões perfuro cortantes, canivete provavelmente, além de sinais de estupro no laudo do IML. Latrocínio. Nada daquilo fazia sentido pra ele, ele só queria uma única vez mais abraçar suas duas razões de viver, arrancadas de sua vida daquela maneira estúpida, e dizer o quanto elas tinham sido importantes. Não tinha forças mais pra nada.O pouco de sua  fé que tinha sobrado estava nas urnas mortuárias, junto com as cinzas.
    Nem o apoio dos amigos, nem o trabalho, nem o tratamento psicológico. Ora, onde já se viu preferir colocar a culpa de sua miséria na coitada da sua mãe, ao invés daqueles dois demônios que tinham, num único dia, destruído o que levou anos para ser construído, deixando-o naquele estado, mortificado? 'Vou embora dessa cidade maldita', era o que ele conseguia repetir nas sessões, falando daquela que tinha se tornado uam espécie de Sodoma ou Gomorra pra ele : Rio de Janeiro. Não, não podia continuar morando ou trabalhando naquele inferno, iria procurar uma oportunidade de ir embora, vaga para anestesista era o que não faltava em outras cidades,  capitais ou interior do Brasil. Enfim, nada conseguia dirimir  seu sofrimento e teve que voltar ao trabalho até achar um lugar pra ir.
    Tinha se tornado uma espécie de zumbi, de boneco sem vida cuja única força motriz era o ódio e desejo de vingança . Ia para o hospital, fazia seu trabalho sem uma palavra a mais que o estritamente necessário e voltava no fim de tarde , não antes de ter se aplicado uma generosa dose de fentanil(1), que ia se completar com o uísque e os tranquilizantes, em mais uma noite que passaria fora da realidade, entregue.
    Suas feições se contraíram num esgar de raiva quando ele viu aquele paciente entrando em uma maca na sala de cirurgia, fácies de dor, as mãos segurando o abdome como se suas vísceras fossem sair por ali, para realizar uma laparotmia após lesão por PAF(2). Reconheceu nele o ser abominável que o havia mandado para aquele inferno em vida. Sem falar nada, passou o garrote em seu braço, pegou uma veia. Virou-se,pegou as drogas para indução e conectou a primeira( e que seria a única...) no equipo, abaixou perto dos ouvidos do paciente, tirou sua máscara e disse: 'Tá lembrado de mim, filha da puta, de um assalto naquela casa no Alto da Boa Vista, uma mulher e uma menina na casa...lembra?' A cara do outro se encheu de horror ao reconhecê-lo, mas não houve tempo, o anestesista rapidamente injetou o relaxante muscular(3), causando paralisia imediata. Não iria administrar as drogas restantes, aquelas que tirariam sua dor e sua consciência durante a cirurgia.O demônio parecia cochichar em seu ouvido, rindo de tanto prazer...
    Entubou-o, colocou-o em ventilação mecânica e virou-se casualmente para o cirurgião com um sorriso no canto dos lábios:'Pode começar...' A incisão veio acompanhada do disparo de alarmes nos monitores, em sua cabeça uma canção maldita que parecia estar sendo orquestrada pelo próprio diabo. Arritmias, taquicardia intensa, pressão arterial nas alturas, o anestesista desabilitou todos os alarmes e respondeu casulamente a pergunta do cirurgião se estava tudo bem 'Tudo ótimo, pode seguir...'
    A morte veio provavelmente como um bálsamo para aquele miserável, pouco tempo depois, retirando-o da cruz onde havia sido pregado. O anestesista, durante o procedimento, por algumas vezes ainda chegou perto de seus ouvidos e sussurrou as palavras que tinha ouvido de sua nulher e sua filha naquele dia fatídico.
    Tempos depois, decidiu estar entre os vivos não fazia mais sentido. Preparou seu quarto e o soro contendo 1 g de tiopental sódico, o relaxante muscular e o cloreto de potássio(4), conectando então à sua própria veia. Ultimamente, não conseguia nem mais chorar, como se houvesse secado, mas como que adivinhando que aquele momento tinha chegado, seus olhos expeliram a derradeira lágrima de sua vida. A última cena que viu por entre os olhos embaçados foi do garrote em seu braço ser solto, iniciando a infusão..."



Notas do autor:

1) Morfínico potente usado em anestesia, tem como efeitos que podem levar ao vício a euforia, sensação de bem estar, sono.
2) Laparotomia é a abertura da cavidade abdominal, no caso por PAF, projetil de arma de fogo.
3) Droga usada como paralisante, causando relaxamento de toda musculatura, inclusive a responsável pela respiração, o que facilita a cirurgia.
4) Drogas usadas na pena de morte por injeção letal, a primeira causa perda da consciência, a segunda paralisia muscular e a terceira, parada cardíaca.

4 comentários:

Edilene Ruth disse...

História sinistra o.O
Ótimo conto Dr.!!!

Beijão
Edilene
http://devaneiopulsante.blogspot.com
www.papodequinta.com

Fabio Piva disse...

Excelente conto! Não parece ficção, tampouco parece o trabalho de um estreante.

Talvez só uma parte seja ficção... será? Ei, você não é anestesista? O_O

Fabio Piva
http://paciencianegativa.blogspot.com

Edpalo disse...

Uia...Muito bom Doc. !!!!

Nat's disse...

Muito bom!!!! =P

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Médico, anestesista, ateu e peão

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