domingo, 29 de agosto de 2010

    Viver a medicina também é conhecer até que ponto vai a maldade no ser humano, por vezes inacreditável pra quem vive no mundinho dos prédios e dos condomínios fechados dos bairros nobres da cidade. Eu confesso que não canso de me surpreender, mesmo vacinado há muitos anos pelo trabalho diário.
   Essa realidade é muito mais pungente e real nos plantões de pronto socorro dos grandes hospitais públicos, realidade esta que tenho a sorte de não mais participar, mas os relatos de minha curta passagem por este tipo de trabalho já dão uma boa amostra do que é ser médico num país de terceiro Mundo...
   Tenho certeza que outros concordarão comigo, ver lesões horríveis, cirurgias extensas, sentir aquele cheiro desagradável nem chega perto de conhecer as histórias de bastidores...
   Eu dava plantão, já como anestesista, quando morava no Rio, num Hospital público no início da Rodovia Presidente Dutra, referência de acidentes automobilísticos e violência de uma região conhecida pela pobreza e criminalidade, que é a Baixada Fluminense e sinceramente os casos que chegavam de bandidos baleados ou acidentes de carro com as piores lesões não me impressionavam, mas houveram alguns casos que marcaram pelas histórias.
  Eu dava plantão de sábado, reconhecidamente o mais violento em qualquer hospital, confesso que naquela época gostava de atender trauma, era empolgante pegar os pacientes com lesões fatais, hemorrágicas, degolas, lesão por arma branca e de fogo, quanto maior o calibre, mais empolgante, e tentar equilibrá-los e entregá-los vivos no pós operatório, os cirurgiões, novos como eu, tinham o mesmo sentimento.
Feliz Natal...
   Cheguei num sábado de Natal, dia 25 pela manhã, cansado e a fim realmente de tirar um cochilo, pois tinha ido dormir tarde na véspera. O início do plantão geralmente era tranquilo, começando a pegar fogo depois do almoço. Estava trocando de roupa no vestiário do centro cirúrgico quando o colega que eu estava rendendo apareceu. Dei feliz natal pro cara e ele me deu a triste notícia que estava entrando uma laparotomia. "Puta que pariu, pensei, lá se vai meu soninho..."
   Meu "soninho" não era merda nenhuma perto do que ia ouvir...A paciente era uma senhora de 86 ANOS, que tinha sido espancada, estuprada e empalada com pedaços de madeira e pasmem, atirada num valão de esgoto depois. Puta merda, quem é o animal ou animais que tem coragem de fazer um troço desse, na véspera do Natal??? Entrei pra cirurgia e apesar dos esforços da equipe cirúrgica e meus, teve uma hora que o cirurgião olhou pra mim e eu só fiz uma negativa com a cabeça. Foi um silêncio sepulcral na sala, como eu nunca tinha visto, enfermeiras chorando baixinho por uma pessoa que elas não conheciam, algo incomum. Desliguei os aparelhos e saí dali. Depois nos informamos que o cara, já preso junto com os comparsas, tinha feito aquilo com a própria avó, pois ela tinha negado dinheiro pra ele comprar drogas...
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Nunca esqueça de pagar suas contas...
   Neste mesmo hospital, ainda bem que não em meu plantão, cheguei um dia e me contaram que naquela semana estava rolando uma cirurgia de um viciado com lesões por PAF. A cirurgia ia bem, o paciente até que ia sobreviver, quando um barulho de gritos e comoção na entrada do bloco operatório. De repente, entra o traficante que não tinha conseguido matar o paciente, manda todo mundo se abaixar, tem a frieza de confirmar a identidade do "operado" e descarrega um pente inteiro de uma Glock no campo cirúrgico. Depois ele pede desculpas pelo incômodo e sai com a calma e a certeza que a impunidade traz, parece que já tinha "acerto" com a polícia local, algo que obviamente os presentes não tinham nem queriam provar. Provável "causa mortis": o rapaz tinha cheirado a noite toda e tentou fugir sem pagar a conta na boca de fumo...

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Qual a culpa do moleque?

Estava uma vez na sala esperando um paciente baleado, sem gravidade, lesões em abdome. Entra a maca com o paciente algemado, acompanhado por um policial que a cada meio minuto dava uma coronhada na cabeça do paciente. Olhei pro meganha e falei "Ô chefia, pode deixar que eu anestesio, essa tua técnica aí tá ultrapassada..." O policial retruca: "Sabe o que esse filho da puta aí fez?" Eu geralmente não gosto de saber essas coisas, porque mal ou bem eu sou um ser humano, e a vontade interior de maltratar um cara que fez uma maldade é inerente a qualquer um, e eu não estou ali pra julgar ninguém. Falei que não queria saber, só que ele me deixasse trabalhar em paz. Mesmo assim o cara falou "Esse animal aí deu uns tiros na ex namorada que não queria voltar pra ele, só que a menina tava segurando o filho de 1 ano deles, a mãe tá sendo operada e vai sobreviver, mas o moleque morreu na hora..." O cara tava tão drogado que ainda xingava a vítima, chamava de "piranha" pra baixo. Respirei fundo enquanto o policial dava a última porrada no infeliz e pus ele pra dormir...

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5 comentários:

Nat's disse...

Seus textos são muito bons! Você escreve muito bem. E falo com a certeza de serem bons pela indignação e tristeza dessas estórias. Mundo, mundo cão!

PinkBaby disse...

Pqp mesmo esse trabalho !
Imagino ter que salvar uma pessoa que merecia morrer da forma mais cruel possível !
Abençoados sejam o doctors! Eu nao teria essa coragem!

Edilene Ruth disse...

Uau... sem anestesia mesmo, a história da avó me emocionou, afinal avós pra mim são coisas sagradas, e quem fez isso... ah quem fez isso nem tenho uma denominação pra tal...
Valeu pela visita e comentário no meu blog que está nascendo.

Edilene
@edileneruth
http://devaneiopulsante.blogspot.com

Frava disse...

Eu não serveria p essa profissão, Cruz credo!

xucamica disse...

Nossa....to passada tb....que coragem!

Quem sou eu

Médico, anestesista, ateu e peão

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